Ele acordou acorrentado, sujo e machucado, preso a uma viga numa das galerias inferiores do navio. Ao seu lado alguns colegas de tripulação também presos, amarrados aos corpos já sem vida do Capitão e do primeiro imediato daquela embarcação, um navio mercante Inglês, cujo nome ninguém mais lembra, assim como os do capitão ou qualquer outro tripulante. Nem mesmo o nome de Bartholomew Edward Roberts, segundo imediato e mais alto posto entre os sobreviventes daquela abordagem pirata, seria mais lembrado depois dos dias que viriam.
Bartholomew, ou Bart Caralimpa, como era conhecido pelos decks do navio, devido a barba sempre aparada e uniforme impecavelmente limpo, era um jovem ambicioso e com talentos, almejava subir na carreira e logo capitanear seu próprio navio da Marinha Inglesa. Mas seus planos foram drasticamente alterados naquela noite de calmaria no mar, em meados de 1716. Enquanto a maior parte da tripulação dormia e o navio voltava tranquilo de mais uma boa negociação nas Ilhas Caribenhas, fora sequestrado por um navio pirata. Foi muito rápido. Quando os ingleses se deram por conta, os ganchos e cordas prendiam e arrastavam um navio para perto do outro e não houve tempo para reação. Bart, que cochilava em uma banqueta na cabine dos imediatos, não ouviu nada enquanto seus marinheiros eram mortos ou rendidos no convés principal. Acordou num baque, com um cheiro horrível que misturava vinho, baba e dentes podres, próximo ao seu rosto. E tão rápido quanto os seus olhos se abriram, novamente se fecharam ao ser nocauteado por um murro bem nas fuças.
Os dias que se passaram. Acorrentado naquela galeria escura e úmida, via seu capitão apodrecer e seus colegas se mijarem e se cagarem sentados ali, sem comida ou água. Anunciavam uma morte iminente para o jovem de barba bem feita. Foi quando na sexta noite, acordou sentindo um cheiro agradável, que fez sumir todo o fedor de sangue, bosta e morte. Era cheiro de cerveja, boa cerveja, e com a pouca força que lhe restava abriu os olhos e encarou, na escuridão daquela prisão, uma criatura que em outro momento o faria rezar para Deus ou algum santo dos marinheiros, mas que na atual situação, não lhe pôs mais terror do que o que já vivia. Estava sentado em um barril, as roupas pareciam as de um dos piratas, a pele, cheia de tatuagens e cicatrizes eram de um vermelho escuro, encarnado. Seus olhos brilhavam, e brotava do lenço que cobria sua cabeça, um par de chifres demoníacos: com certeza era o Diabo que finalmente vinha buscar sua alma, pensou quase em alívio.
Mas apesar de tudo isso parecer terrível, aquela figura lhe passou calma. Tinha um sorriso maroto, quase agradável, de onde reluzia um dente de ouro. Brincava com uma adaga numa mão e na outra segurava com carinho uma garrafa da cheirosa cerveja.
- É meu rapaz, você não parece estar nos seus melhores dias – disse o capeta rindo e dando um gole na sua cerveja. O que restava do jovem tentou responder, mas estava fraco demais e usava todas suas forças para manter os olhos abertos e tentar descobrir se o que via não era uma alucinação anunciando sua morte.
- Não diga nada, só me ouça – cochichou o chifrudo, sem que mais ninguém ali parecesse vê-lo ou ouvi-lo – Quero lhe oferecer, uma chance de sair daqui vivo. Mas deve primeiro entender que tudo mudará se aceitar e que terá uma dívida comigo!
Bartholomew sabia que era a sua alma que ele queria, que esse era o preço pra sobreviver. Sabia também, como bom mercador que era, que provavelmente não estava fazendo um bom negócio, mas que também não estava em posição alguma de barganha. Acenou positivamente com a cabeça e o sorriso do tinhoso foi de uma orelha a outra. Ele se aproximou e com a faca que brilhava como prata, fez um corte na palma da mão do moribundo e logo lhe deu um cumprimento apertado, como se fossem bons companheiros fechando um negócio, enquanto sangue escorria e pingava quente no chão. Encostou a garrafa nos lábios do garoto para que desse um grande gole, daquela que com certeza era a mais cremosa e cheirosa cerveja que o guri já havia tomado, e disse:
- Agora descansa, que amanhã te darei as barbadas.
Continua....
Conto Cartélico escrito por Lucas Rosa, se curtiu deixa um comentário aí pra nós!